Como eterno estudante de direito que sou li e analisei a defesa apresentada pelos advogados de Bolsonaro.
Argumentos em sua imensa maioria irretorquíveis e que dificilmente serão afastados se a tecnicidade jurídica for empregada como deve ser.
Não vou analisar a todos, mas apenas os que me parecem mais importantes e factíveis.
Começam os advogados reclamando, e com razão, da ausência de acesso a todas as provas, mas apenas àquelas que lhes foram apresentadas pelo juízo, o que viola frontalmente o direito de defesa e o contraditório, além da paridade de armas, uma faceta do princípio da isonomia, posto que a acusação teve, ao menos é o que se presume, o conhecimento de toda prova produzida e, com isso, direcionou a imputação em cima dela (sobre investigação secreta, vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/pode-existir-investigacao-secreta/1739208270 ).
Outra questão levantada é a ausência de duplo grau de jurisdição, o que não ocorreria se o processo tramitasse em primeiro grau em que seria possível todos os recursos, o que já não ocorre quando se é julgado originariamente na última instância, não havendo a quem recorrer.
E isso ocorreu por conta da alteração de jurisprudência da própria Corte, que, até então, era no sentido de que deixado o cargo que dava prerrogativa de foro a alguém, o processo passaria a tramitar de acordo com a regra geral de competência, o que, decerto, prejudicou sobremaneira todos aqueles que não mais seriam processados perante o Excelso Pretório.
E nesta esteira também se arguiu a necessidade de o ex-presidente ser julgado pelo Plenário da Corte e não pela Primeira Turma, justamente por ter esse direito em razão do cargo que ocupou e por conta de que os demais acusados, muitos já condenados pelos atos de 8 de janeiro de 2023, foram ou estão sendo julgados por todos os ministros da Corte e não apenas por cinco deles, dois dos quais foi arguida a suspeição e impedimento (sobre o tema, vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/suspeicao-e-impedimento-de-magistrado/1852558163 ).
Tese importante apresentada é a violação do sistema acusatório de processo.
Por esse sistema existe nítida divisão entre o órgão acusador e o julgador. Enquanto a acusação é, em regra, formulada por um órgão estatal (Ministério Público), o poder Judiciário é o responsável pela aplicação da lei e a solução dos conflitos entre o Estado e o particular. As partes estão em igualdade de condições, sobrepondo-se a elas, como órgão imparcial de aplicação da lei, o Juiz. Como corolário lógico desse sistema, vigoram os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV), além das garantias da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), do acesso à Justiça (art. 5º, LXXIV), do Juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII) e do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput, e I), estando vedado ao Juízo instaurar ação penal de ofício (“ne procedat judex ex officio”) e investigar na fase pré-processual, usurpando a função da polícia judiciária (art. 144 da CF) e do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, I, da CF), que também possui o poder investigatório criminal, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim, de acordo com esse sistema, adotado em nosso país, magistrado não pode investigar na fase inquisitiva e nem decretar qualquer medida cautelar, inclusive prisão, sem representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público, ou seja, de ofício.
Interessante que a Lei nº 13.964/2019 introduziu no Código de Processo Penal, no capítulo que trata do juiz de garantias, dispositivo específico que consagra no direito objetivo o sistema acusatório de processo, o que já era reconhecido pela doutrina e jurisprudência pacíficas, por interpretação decorrente do nosso sistema constitucional e processual. Diz a norma: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Por força de liminar em ação direta de inconstitucionalidade que questiona o juiz de garantias no sistema processual, haviam sido sustados os efeitos desse dispositivo e de vários outros no capítulo (STF: ADI 6.299 MC/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 22.01.2020).
Referida decisão liminar foi proferida por conta de questionamento da constitucionalidade do juiz de garantias e não desse dispositivo específico, cujo fundamento já é reconhecido de forma praticamente unânime em todos os tribunais.
Ao julgar o mérito desta ação e outras que questionavam alguns dispositivos da Lei nº 13.964/2019, a Excelsa Corte deu interpretação conforme a Constituição no sentido de que na fase policial o magistrado efetivamente não pode investigar e nem determinar de ofício diligências investigatórias; no entanto, na fase judicial pode produzir provas ou determinar diligências supletivas às partes, a fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito e, com isso, possa formar sua convicção com o escopo de prolatar uma sentença justa, o que já era previsto no artigo 156, inciso II, do Código de Processo Penal.
Note-se, assim, que já há norma positivada, que impede a iniciativa do magistrado na fase investigatória e a substituição da acusação na fase processual, exceto supletivamente, acolhendo expressamente o sistema acusatório de processo, mesmo que de forma mitigada pelo Supremo Tribunal Federal.
Cada ator processual tem a sua função e em nada contribui para o Estado Democrático de Direito que um órgão se imiscua em outro, haja vista o princípio fundamental da separação dos poderes da República (art. 2º, CF), de modo a haver a perfeita harmonia entre eles e a fiscalização de um ao outro dentro dos limites traçados pela Constituição Federal.
Também foi questionada a forma como as provas foram juntadas aos autos da investigação, estratégia conhecida como “document dump”. Junta-se excessivo volume de documentos de modo a atrapalhar a parte contrária. De acordo com a defesa, sequer há índice ou sumário. Isso, aliado ao indeferimento de dilação de prazo para apresentação da resposta à acusação, viola o direito de o acusado ter a mais ampla defesa.
Questionou-se também a aplicação da pescaria probatória, conhecida como “fishing expediton”.
Toda medida cautelar, nela incluída a quebra de sigilo e busca e apreensão, depende da existência de motivo concreto que a justifique, isto é, de fundadas razões; do contrário, o pedido não pode ser deferido. E esse motivo concreto deve ser para cada pessoa individualmente considerada e para a investigação de fato certo e determinado e não para buscar algo que não se sabe se sequer existe.
Do contrário, tal pedido e/ou decisão configura o que a doutrina norte-americana denomina de “fishing expedition” (pescaria probatória), que é uma espécie de auditoria para se buscar algum ilícito sem causa provável, o que é vedado em nosso sistema processual, que exige que as investigações sejam direcionadas a fato certo.
Não é possível instaurar uma investigação para, a qualquer custo, sem fundadas razões, buscar algo contra alguém, que não se sabe ao certo o que seja, que pode nem existir.
Ou, ainda, dar início a uma investigação, que poderia ser facilmente realizada por outros meios de prova menos invasivos a direito fundamental, que, na realidade, por meio transverso, serve de subterfúgio para ser realizada uma devassa na vida da pessoa para se tentar achar algo que a prejudique.
No direito processual penal não se investiga pessoa, mas fatos que caracterizem infração penal, que, no decorrer da investigação, pode apontar para alguém.
Não se pode inverter a ordem legal e partir-se da pessoa para se chegar a algum fato até então incerto, buscando de toda forma encontrar algo que a comprometa e possa dar azo à instauração de uma ação penal.
E, segundo a defesa, ocorreu a pescaria probatória, tentando os órgãos da persecução penal de todas as formas encontrar algo contra Bolsonaro, que pudesse ensejar a propositura de uma ação penal.
Talvez o questionamento mais concreto e certeiro é a alegada nulidade da delação premiada do tenente coronel Mauro Cid, o que, de fato, chamou muito a atenção da população em geral, quando o vídeo de uma de suas oitivas foi apresentado em rede nacional de televisão e pelas redes sociais à exaustão.
Colaboração premiada consiste no benefício concedido ao autor de um delito que colabora voluntariamente com a investigação e o processo criminal.
A ideia é muito simples: são oferecidas vantagens processuais a uma pessoa investigada ou acusada da prática de crime em troca de informações que levem aos demais integrantes da organização ou associação criminosa, esclarecimentos de crimes, recuperação de bens e valores, prevenção de novas infrações penais e localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Ao colaborador poderá o juiz, homologado o acordo, conceder vários benefícios legais.
Um dos elementos mais importantes da colaboração premiada é a voluntariedade, isto é, que o acordo seja feito de livre de pressões indevidas.
Note-se que a colaboração não necessita ser espontânea, contentando-se a norma com a sua voluntariedade. Assim, mesmo que a ideia de colaborar parta de outra pessoa, ou mesmo de pedido ou sugestão da autoridade, poderá o colaborador ser merecedor do benefício.
Para proteger o colaborador de pressões por parte do órgão acusador e da polícia judiciária, seu advogado deverá estar sempre presente aos atos do acordo.
O colaborador deverá ser ouvido pelo magistrado para verificar se não houve pressão indevida e que houve voluntariedade no acordo.
E recomenda a lei de regência que todos os atos sejam gravados em áudio e vídeo, justamente para se constatar a ausência de pressões e constrangimentos, que, se existentes, além de nulificar o acordo, pode até mesmo caracterizar, a depender da hipótese, abuso de autoridade e crime de tortura, quando, por meio de ameaça de prisão ou de outros malefícios, obriga-se o investigado a realizar o acordo.
Neste caso, havendo dúvida sobre a voluntariedade, pode a defesa do delatado requerer ao magistrado acesso às gravações, que existem justamente para essa finalidade. Do contrário, por que houve as gravações?
Isso porque não é absurdo imaginar que a pressão indevida ou até mesmo constrangimento ilegal visando a realização do acordo parta do magistrado responsável pela fiscalização da investigação e homologação do acordo.
Não há lógica e viola o direito de defesa obstar o acesso às gravações pela defesa, anotando que é perfeitamente possível com os meios informáticos existentes impedir que agentes públicos que participaram do ato sejam identificados nas imagens e gravações de áudios, fazendo desaparecer seus rostos e demais aspectos físicos.
E o acordo de delação premiada isoladamente sequer é uma prova. Nada vale sem provas diretas ou indiciárias que confirmem o trazido pelo colaborador, que, obviamente, tem interesse em diversos benefícios previstos em leis que dispõem sobre a colaboração premiada e, por isso, não raramente, pode mentir para obter o acordo.
Por esse motivo, umas das condições do acordo é que o colaborador apresente ou indique formas de se obter provas contra alguém ou para outras finalidades, como libertação de sequestrado e apreensão de produtos de crimes.
A colaboração premiada isoladamente, sem outras provas que corrobore o alegado pelo colaborador, não serve sequer para decretar medidas cautelares, recebimento de denúncia e muito menos para a condenação de outras pessoas.
A função do magistrado na colaboração premiada é a de fiscalizar a legalidade, regularidade e voluntariedade do acordo, isto é, se os requisitos permissivos foram preenchidos para sua homologação.
O Magistrado não participará das negociações para a formalização do acordo de colaboração premiada, a fim de não ser comprometida sua imparcialidade. Mas, para que a colaboração possa produzir seus efeitos jurídicos, deverá ser homologada pelo Poder Judiciário.
O principal requisito do acordo é a voluntariedade, que nada mais é do que a vontade efetiva de realizar a colaboração premiada.
Por isso, o magistrado ouve o colaborador na presença de seu advogado para perquirir se o acordo é voluntário ou se houve algum tipo de coerção.
Não é dado ao magistrado interferir no acordo, exceto para verificar sua legalidade e regularidade formal. Os termos do acordo são elaborados entre a defesa, o Ministério Público e/ou delegado de polícia.
Não pode o magistrado ouvir o colaborador na fase investigativa para produzir prova contra ou para favorecer alguém, haja vista o sistema acusatório de processo vedar esse proceder.
Não existe em nosso sistema constitucional e processual a figura do juiz investigador como na França. Mas, mesmo lá, o magistrado que investigou não vai atuar na fase processual, a fim de que o julgador não seja contaminado pela paixão, o que comumente ocorre quando investiga. Por isso, outro magistrado julgará o caso para que seja mantida a imparcialidade, necessária em qualquer julgamento para ser realizada a verdadeira justiça.
O investigado não pode ser constrangido, mediante violência ou grave ameaça, a realizar o acordo de colaboração premiada para confessar, que é um dos elementos essenciais do instituto, e tampouco para fornecer informações ou delatar outras pessoas.
Anoto que a grave ameaça pode ser justa ou injusta, pouco importa. Não é dado, por exemplo, ameaçar de prisão o colaborador ou pessoas a ele ligadas por laços de afeição ou de parentesco. Mesmo que seja juridicamente possível prender o colaborador ou mantê-lo preso, tal fato não pode ser empregado para forçar o acordo, que deve ser realizado de forma voluntária.
Colaboração premiada que não observe os requisitos legais, notadamente a voluntariedade, é manifestamente ilícita e, por isso, não pode ser empregada processualmente, e todas as provas dela resultantes são contaminadas pela ilicitude original (teoria dos frutos da árvore envenenada), nos termos do § 1º, do artigo 157 do Código de Processo Penal (mais detalhes sobre o tema, vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/colaboracao-ou-delacao-premiada-no-que-consiste-e-quais-sao-as-suas-regras/1742542839 ).
Sem contar, ainda, que a credibilidade do depoimento do colaborador, que delata alguém após ser gravemente ameaçado ou agredido para fazê-lo, é quase zero, uma vez que mediante coerção física ou psicológica a pessoa confessa e diz qualquer coisa para que o ato cesse.
E a defesa do ex-presidente explorou com maestria a suposta ausência de voluntariedade na colaboração premiada, notadamente por conta de áudios vazados do delator (colaborador), que se disse pressionado para falar o que os investigadores queriam, a fim de formar uma narrativa de fatos para acusar Bolsonaro.
No que tange ao mérito, em razão da defesa neste momento processual ser apenas sumária, nega-se qualquer participação na trama desenvolvida, inclusive nos atos de 8 de janeiro de 2023, e ataca-se a denúncia, dizendo ser inepta, por não indicar nenhuma prova de que houve a participação do denunciado.
Enfim, haverá um embate muito interessante entre acusação e defesa, que criará precedentes em muitas situações análogas.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.