(GAZETA DO POVO) – A necessária punição aos autores dos episódios de vandalismo aos prédios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro tem se misturado a inúmeras medidas ilegais sob o comando do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator dos sete inquéritos que tramitam na Corte para apurar a conduta dos envolvidos nas depredações.
Isso é o que sustentam advogados que integram a Associação dos Familiares e Vítimas de 8 de janeiro (Asfav), entidade criada em abril para reivindicar o respeito ao devido processo legal nas investigações. Passados seis meses do dia 8 de janeiro, 253 pessoas seguem em prisão preventiva em Brasília sem individualização das condutas, isto é, todos foram denunciados pelos mesmos crimes e seguem presos sem sequer figurarem como réus. Entre os presos, vários são idosos, pessoas com comorbidades e mães de filhos menores de idade, e a maioria não possui antecedentes criminais.
Até o momento, mais de 2 mil pessoas foram presas e acusadas de envolvimento nos atos. Ao longo dos meses, a maioria passou a responder os processos em liberdade mediante uso de tornozeleira eletrônica, apresentação semanal à Justiça, recolhimento domiciliar noturno e nos finais de semana e outras medidas cautelares.
“As denúncias da PGR [Procuradoria-Geral da República] são genéricas, iguais para todos. Recorremos a um sistema de identificação de plágio usado em instituições de ensino que apresentou um comparativo de 98% entre as denúncias. São absolutamente iguais, só mudam o nome das pessoas”, afirma a advogada Gabriela Ritter, fundadora e presidente da Asfav. “As decisões [do ministro Moraes] que mantêm as pessoas presas também são iguais. Não há nenhuma individualização de conduta, nem avaliação de comorbidades, apreciação de nada. É como se fosse um processo em lote”, questiona.
Desde sua fundação, a associação tem concentrado esforços em denunciar o caso para a imprensa, juristas e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Recentemente, em um congresso nacional de advocacia criminal realizado em Brasília, representantes da entidade entregaram a juristas um relatório apontando as alegadas violações na condução dos processos. Em um evento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em junho, a presidente do STF, Rosa Weber, também recebeu das mãos de membros da Asfav uma cópia do relatório. “Mas o ministro já individualizou as condutas”, disse a ministra, equivocadamente, para em seguida prometer que leria todo o documento.
Nesta quarta-feira (5), a presidente da associação participaria de uma audiência pública na Câmara dos Deputados com o tema “Prisões ilegais de 8 de janeiro e o desrespeito à prerrogativa dos advogados”. A audiência, entretanto, foi cancelada, mas deve ocorrer ainda neste mês.
Relatório aponta 26 violações a direitos dos presos
No relatório entregue a juristas, a Asfav listou 26 violações a direitos dos detidos. Um dos principais questionamentos dos advogados é que os processos deveriam tramitar na Justiça Federal e não no STF, já que os presos não têm foro privilegiado. “O STF é a última instância, então os recursos são escassos. As pessoas não estão tendo direito ao duplo grau de jurisdição [princípio constitucional que garante a todos os cidadãos a reanálise de seu processo em uma instância superior]”, diz Gabriel Ritter.
Outro ponto mencionado é que muitos presos seguem detidos mesmo tendo direito à liberdade provisória, já que são réus primários, têm endereço fixo, profissão lícita e não possuem provas contra si no processo.
Os defensores citam também violação ao sistema acusatório, com o ministro Alexandre de Moraes atuando “como verdadeiro acusador” e mantendo pessoas presas mesmo com parecer da PGR favorável à soltura.
Os advogados mencionam, ainda, ausência generalizada de respostas às petições dos advogados, em especial pedidos de liberdade provisória. Segundo a Asfav, nas ocasiões em que há retorno, os advogados recebem documentos idênticos mesmo que para demandas diferentes, apenas com a mudança dos nomes e dados pessoais dos presos.
“Muitas vezes sequer há retorno a pedidos simples como alteração da área de circunscrição da residência, para ampliar perímetro de monitoramento. Temos convicção de que não há avaliação das petições. Está tudo no modo automático, que chamamos de ‘cumprir tabela’ para dar à opinião pública uma ideia de legalidade”, declara o advogado Claudio Caivano, responsável pela defesa de mais de uma dezena de suspeitos de participação nos atos.
Lista de presos inclui mulher que chegou a Brasília após o fim das depredações e idosos com comorbidades
No dia 8 de janeiro, cerca de 300 pessoas foram presas na Praça dos Três Poderes. Todos figuram no Inquérito 4922, que investiga “executores materiais dos crimes”. Mesmo que não haja provas que comprovem a conduta de cada um dos detidos, todos foram denunciados genericamente por cinco crimes – dentre eles associação criminosa armada e golpe de estado – que, juntos, podem resultar em penas de até 29 anos.
No dia seguinte, foram presas cerca de 2 mil pessoas no QG do Exército em Brasília, onde apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro estavam acampados. Apesar de já terem se passado várias horas do encerramento dos atos de vandalismo, todos foram presos em situação de flagrante. Segundo relatos de presos, a detenção alcançou até mesmo um morador de rua que ia diariamente até o acampamento fazer as refeições.
Os presos no dia 9 de janeiro integram o Inquérito 4921, que investiga “autores intelectuais e pessoas que instigaram os atos”. Todos foram igualmente acusados por incitação ao crime e associação criminosa que, somados, podem chegar a três anos e meio de prisão.
Alguns dos casos chamam a atenção. Um deles é a de Iraci Nagoshi, uma professora aposentada, de 70 anos, que foi presa no dia 8 e se encontra detida até hoje acusada no “pacote” de cinco crimes. Ela estava na Praça dos Três Poderes junto a uma amiga de 72 anos que também foi presa. Segundo a versão da defesa, as duas sequer tinham condições físicas de participar dos atos de depredação.
Além da idade avançada, Iraci tem uma série de comorbidades e chegou a ficar mais de meses sem seus remédios para diabetes, de acordo com a defesa. Ela também chegou a perder os óculos durante a prisão e ficou várias semanas sem o acessório. Na prisão, perdeu peso, teve crises de ansiedade e sinais de depressão; um dos seus filhos está em estado avançado de câncer.
Já a amiga que a acompanhava conseguiu a soltura e responde em liberdade mediante uso de tornozeleira eletrônica. A idosa, que também sofre de comorbidades, precisa fazer exames prévios para uma cirurgia agendada para setembro. Para um dos exames é imprescindível a retirada do equipamento eletrônico. A defesa tenta, agora, a retirada temporária da tornozeleira.
“As pessoas que foram lá para quebrar, vandalizar, colocar fogo, têm que pagar. Mas a dona Iraci é um exemplo de vários presos que estão respondendo pela mesma coisa sem a mínima descrição do que cada um teria feito, o que transborda ilegalidade”, diz o advogado Jaysson França, responsável pela defesa das duas idosas.
“Já entrei com habeas corpus, agravo, várias reiterações dos pedidos de liberdade provisória mencionando todo esse contexto e nada. O ministro simplesmente ignora; não fala que sim, nem que não”, prossegue.
Outro caso curioso é o de uma empresária de 41 anos (o nome será mantido em sigilo por solicitação da acusada), mãe de duas crianças menores de 12 anos. Ela comprovou nos autos que o seu ônibus, que vinha do Rio Grande do Sul, chegou em Brasília somente às 19h30 do dia 8 de janeiro, ou seja, quando os episódios de violência já tinham acabado. Mesmo assim, ficou quatro meses presa e hoje responde em liberdade, mediante uso de tornozeleira eletrônica, pelos delitos de incitação ao crime e associação criminosa.
Um terceiro caso é o do pai da fundadora da Asfav, que também terá o nome mantido sob sigilo. Idoso, sem antecedentes criminais e portador de diabetes e hipertensão, ele segue preso até hoje. Desde a prisão, em 8 de janeiro, já perdeu 20 quilos. Atualmente passa por um quadro de saúde sensível que o impediu de urinar por dias. A informação dada aos familiares é de que ele está em uma fila de urgência para consulta com um urologista.
“Na cela do meu pai tem um senhor de 72 anos e outro senhor com câncer. Há casos em que o sistema penitenciário tem pedido às famílias para providenciar remédios que o SUS não está conseguindo fornecer. Eles não têm condições de manter todas essas pessoas presas”, questiona a advogada.
Notificada seguidas vezes, OAB silencia frente às denúncias
Para advogados de presos suspeitos de participação nas depredações, a OAB tem silenciado frente a denúncias das supostas irregularidades nos processos e de ofensas às prerrogativas de advogados. A Gazeta do Povo contatou o Conselho Federal da OAB detalhando concretamente cinco notificações entregues à entidade desde 1º de fevereiro com a descrição das supostas irregularidades e solicitando um posicionamento quanto ao que havia sido feito pela Ordem desde então.
“O Conselho Federal da OAB tem atuado para garantir o pleno exercício de defesa pela advocacia, sempre que demandada ou alertada sobre violações a prerrogativas profissionais”, respondeu a entidade em nota, sem especificar quais foram as medidas tomadas no caso em questão.
A reportagem enviou nova solicitação com pedido de detalhamento das ações tomadas até agora para apurar as possíveis ilegalidades. A entidade não retornou mais aos contatos da reportagem.
Vale destacar que a primeira finalidade da OAB, segundo a Lei 8.906/1994, conhecida como “Estatuto da OAB”, é justamente “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.