Depois de apoiar os inquéritos abertos de ofício pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o jornal O Estado de S. Paulo reconheceu nesta sexta-feira, 5, que “os limites foram ultrapassados”, diz em manchete o site da REVISTA OESTE nesta 6a.feira.
Em um editorial, o Estadão observou que os procedimentos “estão servindo a propósitos muito distantes de seus objetivos originais”.
“Foram usados agora para remover da internet conteúdo sobre projeto de lei em tramitação no Congresso e para investigar falsificação de cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro“, observou o jornal.
Adiante, o Estadão diz que, nos dois casos, o STF usou os inquéritos “rigorosamente irregular, descumprindo regras básicas do ordenamento jurídico”. “Além de prazo para terminar, toda investigação deve ter objeto certo e determinado”, disse. “E nenhum juiz dispõe de competência universal.”
No texto, o jornal afirma que a abertura desses inquéritos era necessária para tratar de alguns casos. Agora, contudo, vê a necessidade de as investigações terminarem.
“Sob pretexto de defesa da democracia em circunstâncias excepcionais, o STF mantém abertos inquéritos que, na prática, estão conferindo uma espécie de competência universal à Corte e, em concreto, ao relator, o ministro Alexandre de Moraes”, constata o editorial. “O que era para investigar fake news contra o Supremo foi usado para arbitrar debate sobre projeto de lei.”
Para o Estadão, “não se pode tapar o sol com peneira”. Isso porque a condução atual dos Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF não está de acordo com a lei e a jurisprudência do Supremo, segundo o jornal.
Inquéritos no STF
Em 2019, o então presidente do STF, Dias Toffoli, abriu um inquérito para apurar supostas fake news contra ministros da Corte. Toffoli escolheu Alexandre de Moraes como relator.
Oeste publicou uma série de reportagens a respeito.
“Salta aos olhos o fato de, a um só tempo, o ministro ser vítima, acusador e julgador”, observou à época a deputada estadual Janaína Paschoal, jurista e uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff (PT). “Esse inquérito subverte todas as regras inerentes ao devido processo legal”. Janaína se diz especialmente preocupada com a criminalização da palavra. “Aproveito para lembrar que as pessoas alcançadas por essa operação têm me atacado pesadamente”, acrescenta. “Digo isso para evidenciar que, mesmo sendo, de certo modo, vítima, mantenho minhas críticas a essa investigação”.
O jurista Dircêo Torrecillas Ramos, membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, concorda que não compete ao STF apurar, denunciar e julgar. “Investigações, por exemplo, cabem à Polícia Federal, de acordo com o artigo 144, parágrafo 1º, inciso 1, da Constituição Federal”, exemplifica. “Denúncias precisam ser feitas pela Procuradoria-Geral da República ou pelo Ministério Público Federal. Na sequência, um pedido é enviado ao STF. A defesa será exercida por um advogado e cabe ao Supremo apenas julgar os casos. O STF não tem o direito de abrir uma investigação criminal como a das fake news.”
Thaméa Danelon, procuradora regional da República, também considerou ilegal a investigação. Pelo Twitter, ela afirmou que o inquérito “viola o Sistema Acusatório (juiz não pode investigar, apenas o MP e a Polícia), ofende o Princípio da Livre Distribuição e não investiga fatos objetivos e específicos, uma vez que ‘Fake News’ não é um crime tipificado no Código Penal”, entre outras ilegalidades.
O senador Rogério Marinho alertou no twitter
Os inquéritos do fim do mundo (O ESTADO DE S. PAULO)
STF usa inquéritos sobre ‘fake news’ e milícias digitais como pretexto para investigar até suspeita sobre cartão de vacinação de Bolsonaro. Nenhum juiz dispõe de competência universal
Se ainda havia espaço para alguma dúvida, nesta semana ficou patente que os Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF, do Supremo Tribunal Federal (STF), estão servindo a propósitos muito distantes de seus objetivos originais. O primeiro foi aberto para apurar fake news e ameaças contra o Supremo, e o segundo, para investigar atuação de milícias digitais contra o Estado Democrático de Direito. No entanto, foram usados agora para remover da internet conteúdo sobre projeto de lei em tramitação no Congresso e para investigar falsificação de cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Observa-se, nos dois casos, uso rigorosamente irregular dos inquéritos, descumprindo regras básicas do ordenamento jurídico. Além de prazo para terminar, toda investigação deve ter objeto certo e determinado. E nenhum juiz dispõe de competência universal.
Acertadamente, anos atrás, o STF rejeitou o entendimento expansivo da Lava Jato, no sentido de que todo indício criminoso envolvendo governo federal e partidos políticos deveria ser investigado e julgado pela 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba. No julgamento, o ministro Alexandre de Moraes ressaltou o absurdo de transformar uma única vara em “juízo universal de combate à corrupção”. De fato, a interpretação do então juiz Sérgio Moro e dos procuradores da Operação fez parecer, em determinado momento, que todos os grandes casos de corrupção do País ficariam concentrados em um único magistrado. Sob pretexto de combater a impunidade, burlou-se o princípio do juiz natural, que, como Moraes lembrou na ocasião, “é importante garantia de imparcialidade”.
Agora, o País assiste a uma situação similar. Sob pretexto de defesa da democracia em circunstâncias excepcionais, o STF mantém abertos inquéritos que, na prática, estão conferindo uma espécie de competência universal à Corte e, em concreto, ao relator, o ministro Alexandre de Moraes. Os limites foram ultrapassados. O que era para investigar fake news contra o Supremo foi usado para arbitrar debate sobre projeto de lei.
O STF agiu corretamente ao abrir os inquéritos. Existia fundamento jurídico a justificar a competência da Corte nessas investigações. No entanto, não existe fundamento jurídico para tornar esses inquéritos perpétuos, menos ainda para, servindo-se deles, transformar o ministro Alexandre de Moraes em “juízo universal de defesa da democracia”.
Essas investigações tiveram papel fundamental. Em momentos especialmente difíceis, elas representaram a eficaz reação do Estado brasileiro contra quem queria vandalizar o regime democrático. Precisamente por isso, devem ser concluídas, como dispõe a lei. Manter os inquéritos abertos, além de ser ocasião para novas medidas irregulares, coloca em risco o bom trabalho feito antes. A Lava Jato não foi um aprendizado suficiente? Não há apoio popular, nem circunstância política, capaz de legitimar métodos ilegais. Transigir com tais práticas é fazer um tremendo desserviço ao País.
Sem ingenuidade, é preciso reconhecer a oportunidade. Os dois episódios desta semana – arbitrar debate público por meio de inquérito policial e pendurar apuração de falsificação de cartão vacinação contra covid em procedimento relativo a crimes contra o Estado Democrático de Direito – facilitaram o trabalho do colegiado do Supremo. Eles são muito acintosos para serem relevados. Não se pode tapar o sol com peneira. A condução atual dos Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF não está de acordo com a lei e a jurisprudência do Supremo.
O Judiciário tem pela frente um enorme trabalho em defesa da lei e das instituições democráticas; em concreto, o processamento das investigações e denúncias do 8 de Janeiro e o vasto campo de indícios relacionados a Jair Bolsonaro. Não há dúvida de que o caso do cartão de vacinação é apenas o começo. Diante desse cenário, o STF tem o dever de respeitar a lei e sua jurisprudência. A intransigência da Corte com o erro é o que assegura a tão necessária autoridade do Judiciário, especialmente nestes tempos conturbados. (O ESTADO DE S. PAULO).